sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Colecionadora de coisas intocáveis

Pernas passam todos os dias pela Praça da Republica em São Paulo, levam corpos apressados para destinos, muitas vezes, involuntários. Mas é necessário para quem crê que tempo é dinheiro. Eu era um desses pares de pernas distraídas e apressadas da Cidade quando fui abordado por uma senhora e, de repente, me tornei inteiro:
― Devagar com o andor que o santo é de barro.
― Como? 
― O senhor com essa pressa. Não faz bem ao coração.
― Obrigado, vou me atentar a isso.
― Poderia me dar umas moedas ou comprar algo para eu comer?
― Claro, vamos até ali e te pago um lanche. — Não sou de dar dinheiro, e ela percebeu. Seu sorriso era misterioso. Observava-me sutilmente, com seus olhos cor azul de fome.
Enquanto lanchava perguntei:
― Que frase era aquela? Por que falou para mim?
― É um provérbio. Gosto de acreditar que tenho certos poderes de dedução. Sou uma colecionadora de expressões, anoto tudo aqui nesse caderno. Algumas pessoas tem mania de falar tudo em provérbios populares, anoto todos, veja. 
Mostrou-me seu caderno, tinha tudo anotado lá: Jeito de andar, quanto tempo as pessoas ficavam na praça sem olhar para as árvores, os movimentos dos olhos, bocas; desenhos de tipos de sorrisos e olhares e o que cada um deles significava, os movimentos dos dedos e até mesmo descrição de tom e vibração da voz. 
Cada detalhe daquelas páginas me agradava. Os traços das linhas eram sutis como a expressão de meu rosto que eu tentava disfarçar. 
Pegou o caderno e disse:
― Essa sua expressão de admiração é boa. Obrigada pelo lanche, o dinheiro compra pão, mas não compra gratidão.
― Isso é um provérbio que a senhora ouviu também?
― Sim, brasileiros falam por eles boa parte do dia e eu anoto todos. Anoto porque quero escrever um livro da vida do ser humano a partir de suas expressões e manias. 
— E isso é possível?
— Impossível que não é. Como sabe, de grão em grão....
— A galinha enche o papo, entendi. Boa sorte para a senhora.
— Mais uma vez, obrigada. E menos pressa para você. 
De “Senhor” a “Você” acho que ganhei o respeito dela, que foi embora sem olhar para trás. Sentou-se num espaço da praça que havia se tornado seu. Abriu o caderno e começou a escrever ou desenhar. Pensei: “de grão em grão...”, ou melhor, “de expressão em expressão ela terá um livro”. Pedi mais um lanche e sai pelas ruas, sem pressa, para não ferir meu coração de barro.

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